quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Platão e Aristóteles com coxinhas e mortadelas num banquete...


"Platão e Aristóteles! Não são apenas os dois sistemas, mas também os tipos de duas naturezas humanas diferentes que, desde tempos imemoriais e sob as mais diversas aparências, se confrontam de forma mais ou menos hostil. Durante toda a Idade Média houve este confronto que veio até os nossos dias. Aliás esta disputa é o conteúdo essencial da história da Igreja cristã. Sempre se trata de Platão e Aristóteles, ainda que sejam outros os nomes. Naturezas apaixonadas, místicas e platônicas desentranham, do mais profundo de sua índole, as ideias cristãs e os símbolos correspondentes. Naturezas práticas, sistemáticas e aristotélicas constroem a partir dessas ideias e símbolos um sistema sólido, uma dogmática e um culto. A Igreja absorveu, ao final, ambas as naturezas, enraizando-se uma sobretudo no clero e a outra no monacato, havendo entre eles hostilidade sem tréguas.
H. HEINE, I Deutschland.
Extraído de uma citação de Tipos Psicológicos,
Obras completas de Carl Gustav Jung. Grifo meu.



O trecho acima me lembrou de "Coxinhas e Mortadelas". Talvez o leitor tenha pensado nos mesmos tipos.

Heine foi um poeta alemão. Como ele é praticamente desconhecido para nós, cabe dizer que ele tinha um perfil crítico e combatente como o de Voltaire. E a seu tempo enfrentou a censura e discussões não muito coerentes.

Em nosso tempo, é comum testemunhar discussões incoerentes. Monólogos.
Por que?

Até certo ponto, é compreensível. As pessoas tem pontos de vista (objetivos) e referências (bases de informação) diferentes. O que é bom mim pode nem passar pela cabeça do outro. Por exemplo, em 2007 quando trabalhávamos na confecção de uma grade para o curso de Computação da UNIFESP, percebi que as defesas de cada participante da reunião, em termos do que devia entrar e o que devia sair da grade, tendiam ao seu curso de origem. Isto é, tendia-se a defender o modelo conhecido, quase sempre atuamos assim. Percebido isso, é fácil entender que a opinião do outro não necessariamente é errada.

Esse é o ponto de impasse que considero Honesto: as pessoas divergem por terem objetivos ou bases diferentes. Para sair desse impasse, basta aprofundar o conhecimento sobre o assunto. O impasse deve se diluir em questões menores, até que seja possível, conscientemente, escolher entre as opções restantes.

Mas as vezes uma argumentação não é honesta. O debatedor apenas quer impor sua opinião. Suponha uma situação em que uma pessoa não esteja ouvindo os seus argumentos. Faça um teste... É hora de parar a discussão se ela não aceitar um fato óbvio sobre o assunto ao qual ela é contrária. Por exemplo, Cuba e Fidel Castro são assuntos controversos, que aceitam diferentes objetivos e possuem amplo material de base. Mas seja a favor ou contra, entendo que todos devem ser capazes de assumir que Fidel Castro foi uma figura importante na história do século XX. (O leitor pode escolher outro exemplo se for incapaz de concordar com a frase anterior.) Se em uma discussão, um dos debatedores não assumir posições muito básicas e claras, como no exemplo, significa que é uma discussão desonesta. O debatedor quer apenas impor uma opinião. Mude de assunto e deixe de perder tempo; não leve a sério aquela discussão.

Mesmo no começo de uma discussão pode ser bom verificar se trata-se de um diálogo honesto. Para isso, basta fazer pequenas assertivas. Verifique se o debatedor é capaz de assumir, honestamente, opiniões que não o agradam.

Então, excluídos os cenários desonestos, existem situações em que uma discussão não converge de jeito nenhum. As tentativas de nivelamento das referências parecem não surtir efeito. Nada parece ajudar para que a discussão chegue a termo. Aí entra a questão de Jung destacada no começo do texto!

Platônicos e Aristotélicos, apaixonados e sistemáticos, holísticos e pragmáticos. Símbolos e números. Ideais ou fatos.

Podemos estar discutindo sobre bases diferentes e incompatíveis. O caso Coxinhas e Mortadelas é um exemplo. A discussão sobre a validade legal do Impeachment é outro exemplo, talvez mais simples. Uns discutem sobre a previsão nas leis, outros discutem sobre as intenções do ato.

Observe que não é uma questão de referencias diferentes, as pessoas podem ter as mesmas informações, mas uma discute em um campo e outra em outro. E não há interesse nos campos alheios.

Na discussão entre Coxinhas e Mortadelas, as bases diferentes em questão são: para uns, cabe observar os fatos econômicos negativos, para outros é mais importante a identificação de setores políticos com a população. São bases de discussão completamente diferentes. Portanto, não chegarão a termo.

A diferenças Platão x Aristóteles talvez possa ser colocada como Vontade x Fatos. (Cabe escrever um livro sobre o significado do termo Vontade, mas ao usar o termo aqui me refiro mais aos arquétipos platônicos do que ao uso comum da palavra Vontade, associada ao desejo.)

Uma discussão Platão x Aristóteles vai ser marcada por bases diferentes de interesse. Os Platônicos defenderão ações associadas com o ideal, com o que querem para o futuro. Os Aristotélicos serão mais pragmáticos e defenderão o que enxergam como futuro. A sobrevivência é tudo para um Aristotélico.

Ainda estou refletindo se os indivíduos são sempre de um tipo ou de outro, ou se podem trocar o chapéu conforme o assunto. E o que os faria mudar de chapéu?  Por mero interesse é possível mudar de arcabouço argumentativo?

Termino aqui. Achei genial a colocação de Heine e não pude deixar de fazer o paralelo com Coxinhas e Mortadelas. De agora em diante, espero não ser mais chamado de Coxinha :-)

Fica a seguinte tarefa: quando identificar uma discussão difícil, observe se não se trata de uma discussão Platão x Aristóteles.